W. G. Sebald: o olhar fotográfico na construção da narrativa

Na edição de Austerlitz, publicada pela Companhia das Letras, em abril de 2008, com tradução do professor José Marcos Mariani de Macedo, temos duzentas e oitenta e oito páginas de texto divididas em apenas sete parágrafos. A narrativa de Austerlitz, último romance de W. G. Sebald, segue ligeira, quase sem paradas. Tal como as estações ferroviárias que o protagonista pesquisa, e também retrata em imagens fotográficas, sete pequenas pausas por entre as quais a narrativa ora avança ora retrocede, num longo percurso em busca da memória e de suas reminiscências.

Em meio a essa paisagem nebulosa, nas quais se mesclam diversas vozes – a dos passantes, a do protagonista e a do narrador – setenta e seis fotografias em preto e branco, além de outras dez ilustrações, abrem algumas janelas no denso bloco de texto, intercalando-se com as imagens mentais que também vão sendo criadas pelo leitor.

“(…) seu olhar muitas vezes pousava demoradamente sobre a fileira de janelas, as pilastras caneladas ou outras partes e detalhes da construção. A certa altura, Austerlitz sacou uma câmera de sua mochila, uma velha Ensign com fole telescópio, e tirou várias fotos dos espelhos agora já bastante escurecidos (…)” (SEBALD, 2008:11)

Jacques Austerlitz, o protagonista dessa narrativa, é um historiador da arquitetura europeia, alguém que, segundo os dicionários, estuda os assuntos relacionados aos fatos históricos. Ou seja, ele, dentro de uma ficção, é uma personagem que se ocupa aos fatos reais, ou supostamente reais, em oposição aos fictícios. Eis um detalhe importante que ilustra o jogo entre as instâncias de realidade que o autor vai aplicando ao longo do romance. Essa é uma característica comum nos outros romances do autor, em que ele embaralha fatos reais aos fictícios, intercalando-os com ilustrações e fotografias com grande teor documental. Afinal, emprestando algumas palavras de Barthes sobre o processo de truncagem na fotografia, poderíamos dizer que Sebald também:

“(…) utiliza a credibilidade inerente à fotografia, que, como vimos, consiste em seu extraordinário poder de denotação, para apresentar como simplesmente denotada uma mensagem que, na verdade, é fortemente conotada (…)” (BARTHES, 1990:16)

Assim, enquanto no processo de truncagem, descrito por Barthes, há a supressão ou a alteração de alguns elementos da imagem, simulando verossimilhança, o recurso utilizado por Sebald consiste em deslocar inteiramente os referentes originais de uma fotografia, emprestando-os a um novo contexto: ao de sua narrativa. Um emprego que resulta em um efeito semelhante ao que acontece nas artes plásticas desde a vinculação de textos e de imagens nos livros ilustrados. Mas, em relação à fotografia há um porém. Embora a representação não corresponda ao real, ela é o seu análogon perfeito, e o sentimento de denotação que temos diante dela é muito forte, o suficiente para que o senso comum a tome como real. (Barthes, 1990).

Desse modo, por exemplo, não sabemos a quem pertenceram, de fato, os finos traços de uma jovem mulher que aparece em uma das páginas como sendo a mãe de Jacques Austerlitz, “tal como ela fora na época” – um retrato, enfim, encontrado por ele. Mas, para a narrativa, aquela é a sua mãe, e aquela imagem sobrepõe a imagem mental que o leitor, por ventura, tivesse criado da personagem. Ainda assim, podemos notar na imagem outros elementos da composição, como, pro exemplo, a gama tonal muito escura – que ressalta os seus contrastes e as suas sombras, essas que ocupam mais da metade da fotografia – etc. E sabemos, sobretudo, que essa imagem entrecorta o seguinte trecho da narrativa:

“(…) de pronto, e sem sombra de dúvida, como ela disse, reconheceu Ágata tal como ela fora na época. Enquanto me contava tudo isso, Austerlitz e eu fizemos o caminho de volta do cemitério (…)” (SEBALD, 2008: 246)

De qualquer maneira, seja lá quem tenha sido a jovem mulher no mundo real, para a fotografia, ela está morta (Barthes, 1990), assim como Agáta, a mãe biológica do protagonista, também está morta para a narrativa. Ao menos, essa é a conclusão mais recorrente a respeito do tempo fotográfico, ou seja, a de que o referente de uma foto está sempre no passado. Para Barthes, na fotografia histórica há sempre um esmagamento do tempo, ou seja, “isso está morto e isso vai morrer.” (Barthes, 1984, p. 142)

Walter Benjamin nos lembra que “a partir da chapa fotográfica, por exemplo, é possível fazer uma grande quantidade de cópias e que isso retira o sentido à questão da cópia autêntica. Barthes, por sua vez, que a cena capturada por uma câmera ocorre uma única vez e que nunca mais poderá ser repetida existencialmente. É o que ele chama de “isso foi”. A expressão não remete apenas ao instante (e às suas gradações) com o qual a fotografia contemporânea pode ser produzida, mas também a um tempo apreendido que não pode mais ser recuperado. Assim, mesmo se consideramos as primeiras câmeras e as longas horas de exposição que os pioneiros necessitavam para sensibilizar as chapas fotográficas, ainda assim, o tempo decorrido estaria “mortificado” na imagem.

“Diante da foto de minha mãe criança, eu me digo: ela vai morrer: estremeço, tal como o psicótico de Winnicott, por uma catástrofe que já ocorreu. Que o sujeito já esteja morto ou não, toda fotografia é essa catástrofe. (BARTHES, 1984: 142)

Um processo muito semelhante ao fotográfico se dá no conteúdo da narrativa. À medida que as páginas avançam, acompanhamos a obstinada busca de Austerlitz por referentes que ficaram no passado e também não podem mais ser recuperados. Tal como as fotos que surgem no texto, tudo o que ele possui, a princípio, são reminiscências de um pretérito obscuro, manifestando-se sobretudo por meio de sensações, lembranças turvas, flashes.

Sabemos também que Austerlitz é um historiador e professor – da área de arquitetura – e que, ao longo do enredo, segue coletando informações históricas para uma pesquisa acadêmica sobre as estações ferroviárias. E, em suas andanças por elas, não consegue se livrar da aflição das despedidas e do medo de lugares estranhos, que sempre o acompanham, ainda que tais sensações não façam parte do seu objeto de estudo.

De alguma forma, ele intui que:

“Ninguém pode explicar exatamente o que acontece dentro de nós quando se escancaram as portas atrás das quais estão escondidos os nossos temores de infância.” (SEBALD, 2008: 29)

Mas, antes de descobrir a íntima relação entre um momento decisivo da sua infância e as estações ferroviárias que passou a estudar, quando adulto, tudo o que ele sabe, até então, é que vivera em companhia de um pastor calvinista e de sua esposa tímida e pouco afetuosa: os seus pais adotivos. Viveram os três em uma casa infeliz, no interior de Gales, isolada no alto de uma colina, e grande demais para três pessoas; tão grande que, com o passar dos anos, algumas portas sequer eram abertas e Austerlitz tinha um sonho recorrente: o de que algumas delas se abriam e ele, finalmente, adentrava “um mundo menos estranho e amistoso.” Até onde ele se lembrava, não havia tido qualquer contato físico com os dois, e uma única vez sentira os dedos de sua mãe adotiva percorrendo brevemente os seus cabelos; numa ocasião em que ele saía depressa para esconder o choro.

Algum tempo após a guerra – assunto que não fora sequer discutido em casa – ela começou a adoecer lentamente de uma enfermidade que ninguém, nem mesmo ela, sabia explicar. E que eu, como leitora, entendo que, talvez, fosse apenas a sua humanidade se esvaindo, enquanto ela, imobilizada sobre uma cama a olhar o teto, tornava-se tão inerte e silenciosa quanto os elementos inanimados do quarto, os objetos. Uma moléstia que não era somente dela, talvez, mas da casa, das reminiscências da guerra, do horror do Holocausto e do próprio percurso da História. O marido, pela manhã e à noite, permanecia um pouco ao seu lado, mas ambos não conversavam. “Era como se estivessem morrendo lentamente, à força do gelo nos corações (…)”, narra Austerlitz.

Impotente diante de sua enfermidade, ela adquiriu o compulsivo hábito de passar em si mesma uma espécie de pó branco que, aos poucos, foi se acumulando sobre os outros objetos do quarto. E, assim, após um tempo, tanto ela quanto os móveis, piso e corredores estavam recobertos por esse pó granulado. Esse acontecimento poderia reforçar a ideia de que, talvez, ela estivesse se desumanizando e se fundindo aos demais elementos do espaço. Lendo por esse viés, a morte da personagem estaria, para a narrativa, do mesmo modo como uma pessoa do mundo real, em três dimensões, sucumbe bidimensionalmente ao espaço de uma foto, ou seja, tornando-se tão inerte e silenciosa quanto Gwendolyn, a mãe adotiva de Austerlitz.

Em cópias fotográficas, é comum notarmos, inclusive, o mesmo efeito de grânulos brancos a recobrir a superfície da imagem. E, mesmo quando não aparentes, os grãos fazem parte do processo fotográfico analógico, o mesmo usado por Austerlitz. Isso ocorre porque o princípio do filme consiste em captar a incidência da luz a partir de cada um dos grãos que compõem o haleto de prata. Aqueles grãos que foram afetados pela luminosidade, e dependendo da quantidade dessa, apresentam uma variação na escala de cinza. Já os grãos que não foram afetados pela luz constituem as regiões de sombra da imagem. Esse processo encontra, metaforicamente, muitas analogias dentro da narrativa e na construção das personagens.

“Essas partículas são o grão da emulsão, a prata metálica reduzida depositada quando o cristal de haleto respondeu à luz e foi ‘revelado’. Quero ressaltar que os ‘grãos’ escuros visíveis na cópia são, na verdade, os espaços entre os grãos do negativo; uma vez que os grãos do negativo retêm a luz durante a revelação da cópia, eles ficam brancos no papel.” (ADAMS, 2003: 34)

Dependendo da sua fabricação, cada filme apresenta uma determinada velocidade, correspondente à sua sensibilidade. Em outras palavras, quando há pouca luz, a emulsão apresenta grãos de tamanho grande, pois assim eles podem captar a luz com maior velocidade – embora isso provoque o aumento do efeito granulado e a diminuição da nitidez. Em situação inversa, ou seja, na abundância de luz, os grãos podem ser mais finos e menores, gerando imagens mais nítidas.

Quanto ao plano da narrativa, sabemos que a atmosfera predominante não é nítida, muito menos lúcida, mas embaçada, nebulosa, marcada pela angústia e o embotamento da memória por décadas a fio. Há uma penumbra em torno da história que o protagonista quer rememorar. Até os quinze anos, nem mesmo o seu nome verdadeiro o protagonista sabia. Isso transparece tanto que ele, ao contar a sua história pela primeira vez, diz ao narrador:

“Desde minha infância e minha juventude, começou ele finalmente, tornando a dirigir o olhar para mim, eu nunca soube quem na verdade sou.” (SEBALD, 2008: 48)

Não podemos afirmar se o fato de incorporar a fotografia como recurso estilístico, ou ainda, como uma tentativa de traduzir a experiência contemporânea fragmentária, influenciava o modo como Sebald compunha as suas imagens poéticas; ou se ocorria o contrário; mas para quem está habituado a um laboratório fotográfico, as metáforas encontradas na narrativa podem remeter aos procedimentos técnicos que ali são feitos.

Nesse caso, o casamento entre o texto e a imagem, tal como fora organizado por Sebald, aconteceria em um nível mais profundo do que a mera disposição gráfica, ou mesmo entre as suas relações semióticas; a junção entre o texto e a imagem ocorreria nos níveis da metalinguagem, tanto literária quanto fotográfica; de modo que cada uma das linguagens artística emprestaria à outra, não apenas os seus referentes, mas também a reflexão crítica sobre o seu fazer artístico e a consecução de sua obra. Uma espécie de intercâmbio mútuo entre as duas technés.

Percebamos, por exemplo, como a narrativa no trecho a seguir empresta a sua voz (que só pode fluir em uma linha do tempo) aos mudos referentes da fotografia. Esses, enquanto tal, podem ser vistos, e nada mais, pois já estão “mortos”, presos e em silêncio; não podem mais se expressar, nem mesmo para mostrar a sua indignação diante do fato de terem sido retirados, de maneira tão abrupta, do fluxo do tempo:

“Ao contrário de Elias, que sempre relacionava doença e morte com provação, castigo justo e culpa, Evan contava histórias de mortos fulminados pelo destino de forma extemporânea, que sabiam ter sido fraudados da parte que lhes cabia e tentavam regressar à vida. Quem tivesse olho para eles, disse Evan, podia vê-los com frequência. À primeira vista, eles pareciam pessoas normais, mas olhando mais de perto, os seus rostos borravam ou tremeluziam um pouco no contorno. Em geral, eles eram também um palmo mais baixos do que tinham sido em vida, pois a experiência de morte, afirmava Evan, nos encurta, do mesmo modo que um pedaço de tecido encolhe quando lavado pela primeira vez.” (SEBALD, 2008: 57)

Nessa leitura, além de dialogar com outros teóricos, como Barthes e Benjamin, sobre as diferenças entre o tempo fotográfico e o tempo literário, o espaço e suas dimensões, Sebald ainda estaria aludindo aos processos técnicos da fotografia analógica: a revelação dos negativos e a ampliação das cópias (que apesar de ser uma “ampliação” em relação ao negativo, não deixa de ser um “encolhimento” em relação ao objeto real).

Durante os dois processos químicos, tanto o negativo quanto a cópia são deixados de molho em banhos específicos, durante vários minutos, sob a água corrente. Por isso, essa ideia de empréstimo dos recursos entre as duas linguagens parece ainda mais plausível quando Austerlitz comenta a história que ouvira do pregador, sobre um vilarejo que ficara submerso:

“(…) ele, o justo, me pareceu o único sobrevivente do dilúvio que dera cabo de Llanwddyn, ao passo que todos os outros, seus pais, seus irmãos, seus parentes, os vizinhos e os demais aldeões, eu os imaginava ainda lá embaixo nas profundezas, onde continuavam a levar a vida sentados em casa ou andando pelas ruas, mas sem poder falar e de olhos esbugalhados. Essa ideia que me ocorreu, da existência subaquática da população de Llanwddyn também tinha algo a ver com o álbum que Elias me mostrou pela primeira vez na noite do nosso regresso e que continha diversas fotografias do seu lugarejo natal submerso pelas ondas. Como não havia outras imagens de nenhum tipo na casa do pregador, eu não me cansava de olhar essas poucas fotos (…)”

Desse modo, a intersecção das duas linguagens parece atingir o seu auge no momento em que Austerlitz encomenda uma versão em câmera lenta de um filme antigo, no qual procurava alguma pista de Agáta, sua mãe biológica. Uma solução tão inusitada quanto a sutileza da cena, comovente. Embora não exista, no objeto do livro, o vídeo em movimento, mas apenas uma fotograma que o representa, é no plano da narrativa que os referentes da fotografia, antes presos e subtraídos do fluxo temporal, ganham a liberdade do movimento.

“(…) tão lentos se moviam os seus lábios e eles fitavam a câmera. Não pareciam andar, mas flutuar no espaço, como se os pés não tocassem mais o chão.” (SEBALD, 2008: 242)

Em contrapartida, o fluxo temporal, pertencente apenas à narrativa, é gentilmente “emprestado” à fotografia, na forma dos indicadores de tempo, comum em fitas de vídeo:

“(…) volto a fita, vezes e mais vezes, e vejo o indicador de tempo no canto superior esquerdo da tela, os números que escondem uma parte da sua testa, os minutos e os segundos, de 10h53 a 10h57, e os centésimos de segundo que giram tão rápido que não se podem decifrá-los nem captá-los.” (SEBALD, 2008: 245)

Em minha leitura, esse pequeno trecho representa o auge da narrativa porque é capaz de, não somente, promover a intersecção das duas linguagens utilizadas no processo de criação, mas também por encontrar uma solução, ainda que melancólica, para o dilema do protagonista, que busca tão obstinadamente, e tão em vão, apreender e reter o tempo.

Referências Bibliográficas

ADAMS, Ansel. A Câmera. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2003.

__. A cópia. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2003.

__. O negativo. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2003.

ANDRADE, Fábio de Souza. “O tempo perdido e a câmera escura”. In: Folha de São Paulo, 25-06-2005.

BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

__. O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III. Trad. de Léa Novaes.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica (Primeira versão)”. In: Obras escolhidas I. Trad. Sérgio Paulo Rouanet, 8ª ed

CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: Vários Escritos. 3ª ed. São. Paulo: Duas Cidades, 1995

KLEIN, Kelvin Falcão. W. G. Sebald e a meticulosa educação dos sentidos. Revista Continente, 01 de novembro de 2022. Acesso em 18/03/2023.

RICOEUR, Paul. A metáfora viva. Trad. Dion Davi Macedo. São Paulo: Loyola, 2000.

SEBALD, W.G. Austerlitz. Trad. de José Marcos Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.